Nunca se falou tanto em transformação digital quanto nos últimos tempos. Aliás, vocês já devem estar até cansados de ver esse assunto por aí, mas precisamos debater um erro muito comum de associação: transformação digital não é um tema de tecnologia, é de cultura! Sim, a tecnologia é a viabilizadora, mas a transformação digital só é bem-sucedida se há de fato uma transformação cultural genuína.
Com a pauta em alta, é muito comum ver corporações adotando o tema de uma forma superficial, dando aquela roupagem bonita para dizer “olha, eu estou me transformando digitalmente”, mas no fim do dia não passa apenas de uma bem-sucedida estratégia de comunicação, quando na realidade a velha cultura ainda não permite o negócio alavancar a sua transformação real. Tem muito player que se preocupa mais com o Buzz da exposição pública, só para estar aderente ao tema da moda, do que se dedica a realmente mudar o jeito de trabalhar.
E o que é essa velha cultura? É achar que transformação digital é apenas colocar uns puffs coloridos e videogames à disposição dos colaboradores; dar liberdade para as pessoas usarem bermudas e camisetas nerds no ambiente de trabalho; trabalhar pautas de tecnologia na imprensa para atrair novos talentos; permitir flexibilidade de horários e home office; entre algumas outras ações supérfluas, e pronto! Mas essas iniciativas nada mais são do que “o básico” para se enquadrar numa nova realidade de comportamento. Isso por si só não transforma nenhum negócio, mas concordo que podem o destruir se não aplicadas.
A velha cultura vê o time de tecnologia como executor, como Help Desk. Aliás, muitas companhias ainda terceirizam os seus times, o que só comprova ainda mais essa visão equivocada de prestação de serviços, enquanto não se atentam ao quanto isso é detrator de cultura, engajamento e, consequentemente, de resultados. É assustador ainda ver muitos negócios, até mesmo grandes companhias, que nem ao menos possuem uma cadeira executiva de tecnologia no organograma da alta liderança. A visão é “negócio demanda e tecnologia obedece”. Isso afasta a transformação do seu negócio.
Enquanto existir a cultura de que tecnologia é fornecedor interno e negócio é cliente, estaremos distanciando os times, restringindo o trabalho colaborativo e perdendo oportunidades de somarmos competências e esforços para alcançarmos resultados extraordinários. Isso nos leva a visões mais individualistas e menos colaborativas, como nos casos onde vemos áreas e profissionais batendo as suas metas individuais enquanto o negócio não atinge a sua meta corporativa. Algo insustentável, mas muito mais comum do que vocês possam imaginar.
Transformação digital é se reinventar, é encarar a tecnologia como uma área protagonista do negócio, é dar voz a todos em prol de um trabalho colaborativo. Para tanto, é preciso mudar o status quo. Vamos tangibilizar isso: enquanto a Blockbuster demandava o time para executar novas estratégias de logística para fazer o delivery de seus DVDs, a Netflix investiu em pensar no todo e trouxe o streaming pautado na experiência facilitada ao usuário, na jornada de ponta a ponta aderente a uma nova realidade de comportamento. O destino de cada uma delas vocês já conhecem… e provavelmente numa companhia da velha cultura como a Bluckbuster devia-se muito ouvir a velha e triste “piada” de que TI seria “tempo indeterminado”. Quem trabalha com tecnologia e nunca ouviu essa?
Aos poucos, às vezes até mesmo obrigadas por situações inesperadas como a crise do COVID-19, as companhias vão entendendo que muita coisa mudou no comportamento da sociedade, e que é preciso também mudarmos a nossa forma de trabalhar. Não basta mais ter um time de tecnologia só para manter um site no ar, é preciso trabalhar em conjunto para aprimorar o negócio e escalar os resultados. Se com finos ajustes de tecnologia é possível escalar a conversão de um canal digital, por exemplo, como não encarar a tecnologia como uma área estratégica dentro das organizações?
Aliás, a velha cultura de encarar a tecnologia como fornecedor interno é o maior detrator num ponto primordial para qualquer transformação digital: o recrutamento de talentos para a tecnologia. Com uma demanda cada vez mais abundante no setor, esses profissionais estão cada vez mais exigentes. Se eles não se identificarem com a sua cultura e forma de trabalhar, esqueça! Não há como conquistar esse profissional, que busca cada vez mais a autonomia para gerar real valor ao negócio e à sociedade, ser parte integrante da estratégia e ter a oportunidade de trabalhar a disrupção de forma genuína.
O primeiro passo fundamental para de fato conquistar esse público e transformar digitalmente o negócio, é ter a alta liderança da companhia “comprada” no conceito de que transformação digital é uma questão de cultura e de que a tecnologia tem papel central no todo. Sem isso, de nada adiantam as demais iniciativas. A partir daí, é preciso revisitar profundamente a sua cultura, dar voz a todos independente do peso do crachá, demandar colaboração, dar autonomia com responsabilidade e, acima de tudo, dar exemplo ao disseminar as boas práticas.
Transformar-se culturalmente dói, exige grandes esforços, mas ditará quem sobreviverá no futuro. E o futuro será construído por aqueles que enxergarão a jornada e experiência de seus clientes de ponta a ponta nos mínimos detalhes, que serão ágeis na adaptação à constante evolução da sociedade, que fomentarão uma cultura de construção colaborativa, que enxergarão em seus times de tecnologia a oportunidade de escalar resultados e gerar real valor ao negócio e ao cliente.
*Andre Petenussi é CTO da Localiza