Parece até que foi em outra vida, mas em março, quando o coronavírus deixou de aparecer apenas no noticiário internacional e chegou ao Brasil, as cidades país afora ficaram desertas. Segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em parceria com o Waze, o tráfego de carros nas grandes metrópoles brasileiras chegou a cair mais de 70% entre a primeira e a última sem semana do mês de março.
Se não tinha gente na terra, menos ainda no ar. A redução chegou a 92% no mercado de voos domésticos (nos internacionais, a 100%). Ou seja: o mercado de locação de carros, que tem seu centro nervoso nos aeroportos, praticamente deixou de existir.
O impacto no setor ocorreu em várias frentes. A multidão de motoristas de aplicativo que aluga carro para poder trabalhar viu o número de passageiros cair, e boa parte devolveu os veículos. Empresas com funcionários em home office, precisando diminuir custos, cancelaram contratos de frotas corporativas com essas mesmas locadoras. Pesado.
A combinação desses fatores foi um baque para empresas como a Localiza, a Unidas e a Movida. “A retração chegou a 90% no segmento diário, no qual os clientes são, sobretudo, turistas e motoristas de aplicativo. A terceirização de frotas, em que os contratos são mais longos, sofreu menos, mas mesmo assim teve uma queda de 20%. Na época, não víamos luz no final do túnel”, diz Paulo Miguel Jr., presidente da Abla (Associação Brasileira de Locadoras de Automóveis).
A queda
Entre a segunda quinzena de março e a primeira de maio, a Abla estima que 430 mil veículos tenham ficado estacionados nos pátios das locadoras. Sem ter onde botar tanto carro, as companhias tiveram de recorrer a estacionamentos de shoppings, aeroportos ou outros locais improvisados. “Muitas das nossas lojas e guichês estão nesses espaços; então, diversos estabelecimentos emprestaram as vagas para nós. Afinal, todo mundo estava sendo afetado”, diz Luis Fernando Porto, CEO da Unida. Ele afirma que a empresa chegou a ficar com 55 mil carros parados – cerca de 30% da frota.
A queda no lucro foi brutal. No segundo trimestre de 2020, o período que contabilizou de fato o baque da da pandemia, o lucro da Unidas caiu 95% em relação ao 2T19. O da Movida, idem: 94%. A Localiza sentiu menos a pancada: 52%. Mesmo assim, também foi uma queda expressiva.
As perspectivas sombrias afastaram os investidores. As ações das três gigantes da locação tiveram tombos próximos a 60% entre fevereiro e março. Por outro lado, foram quedas condizentes com as do resto do mercado. O Ibovespa caiu 55% no mesmo período.
Mais: o segmento vinha crescendo de vento em popa nos últimos anos. De acordo com a Abla, o número de usuários de serviços de aluguel de veículos saltou de 23,2 milhões, em 2016, para 49,6 milhões em 2019. O faturamento do mercado também saiu de R$ 13,8 milhões para R$ 21,8 milhões no mesmo intervalo.
Um dos responsáveis por turbinar os lucros das locadoras foi a popularização dos aplicativos de transporte, como Uber, 99, Cabify. E aqui entra uma peculiaridade do mercado brasileiro. Nos Estados Unidos, por exemplo, o aluguel de carros é feito diretamente com as fabricantes, o que impede que as locadoras surfem na onda dos trabalhadores de plataforma que não contam com um veículo próprio.
No Brasil, as locadoras passaram a ter uma nova e crescente clientela, que ajudou a segurar as pontas durante a crise. “As empresas brasileiras têm caixas robustos. Além disso, quase todas haviam realizado captações recentes no mercado de ações, fortalecendo ainda mais as finanças. Por isso, se distanciaram do cenário da Hertz [que entrou com um pedido de falência nos EUA]”, diz Luis Sales, analista da Guide Investimentos.
Mas caixa forte não dura muito sem receita. E, para não ver as finanças derreterem, o jeito foi fazer um verdadeiro saldão. É que, além do aluguel de veículos diários e terceirização, o modelo de negócios das locadoras também se beneficia da venda de seminovos. Como ninguém quer andar com carro velho (além de os automóveis começarem a exigir cada vez mais manutenção com o passar do tempo), as locadoras renovam a sua frota a cada 15 a 18 meses, revendendo os veículos usados.
Só que tem um extra. Elas são as principais beneficiárias da venda direta, na qual você compra diretamente das montadoras, pagando menos impostos. Como, além disso, compram em grandes quantidades, estima-se que as locadoras consigam carros até 30% mais baratos do que pessoas físicas. Ou seja, mesmo com a depreciação, é possível revender e lucrar um bom dinheiro com a operação. Tanto é que, em 2019, entre 51% e 60% do faturamento bruto das principais empresas de locação veio da venda de usados.
Com a pandemia, elas intensificaram esse movimento. A Movida saiu na frente e diminuiu a frota em 12.195 mil carros entre o primeiro e o segundo trimestre deste ano. Logo as concorrentes foram atrás. Entre o segundo e o terceiro trimestre de 2020, o contingente da Unidas caiu em 6.980 veículos. O da Localiza, em 25.375. “A venda de usados foi um importante reforço de caixa, além de renovarmos a frota mais rapidamente”, afirma Jamyl Jarrus Junior, diretor comercial da Movida.
As locadoras menores, com reservas mais curtas, optaram até por vender abaixo da tabela Fipe, tradicionalmente usada como referência para determinar os preços dos veículos. “Chegamos a aceitar valores 20% menores. Também concedemos até 30% de desconto para alguns clientes que pediram um fôlego a mais”, diz Pedro Henrique, gerente-geral da Alugue Brasil de Jacutinga e Guaxupé, empresa que conta com 220 carros.
O caixa também sofreu com a guerra de preços para fisgar os poucos clientes que tinham sobrado. No auge da crise, as tarifas médias do setor chegaram a diminuir em 50%, segundo a Abla. “Criamos tarifas especiais para motoristas de aplicativo, empresas de saúde e outros serviços essenciais. Montamos uma sala de guerra para enfrentar o momento”, diz Jamyl, da Movida.
A ascensão
Se lá atrás o cenário era tenebroso, o que ninguém imaginava era que ele passaria mais rápido que a nossa paciência durante a quarentena. A partir de junho, com a flexibilização das medidas de isolamento em diversas cidades brasileiras, as locadoras viram os clientes voltar. E não só os tradicionais.
Com muitas fronteiras ainda fechadas para os brasileiros, somado ao cansaço de ficar em casa, houve uma redescoberta do turismo doméstico. Só que ficar preso dentro de um avião ainda causa pavor em muita gente. A saída foi, então, fazer viagens para destinos próximos. E, para quem não tem carro, alugar um se tornou uma boa opção.
O resultado foi uma explosão. Localiza, Unidas e Movida, por exemplo, relataram estar com mais de 80% da frota ocupada nos últimos meses, número superior ao período pré-pandemia. A taxa é ainda maior aos finais de semana e feriados. E o tempo de aluguel também aumentou. “Esperávamos uma retomada, mas não imaginávamos que seria no volume apresentado”, admite Paulo Miguel Jr., da Abla.
A recuperação do setor está tão forte que a expectativa é que faltem carros para as festas de final de ano. É que, além da demanda elevada, as locadoras estão com dificuldades em repor a frota desfeita lá atrás.
Segundo estimativas da Abla, as empresas de locação solicitaram cerca de 100 mil novos veículos para as montadoras, mas, até o final do ano, serão entregues apenas metade disso. O tempo de entrega também dobrou, de cerca de 60 para 120 dias. “A cadeia de fornecimento das montadoras depende bastante de importação de peças, o que não foi normalizado. Também existem medidas sanitárias nas fábricas. Tudo afeta a produção”, diz Paulo Miguel Jr.
Com tanta procura, os balanços do terceiro trimestre foram bem mais animadores. O lucro líquido da Localiza, por exemplo, cresceu 59% no período em relação ao 3T19. A Unidas foi no mesmo caminho e reportou lucratividade líquida 44% maior. A Movida destoou dos pares, e registrou queda de 38%. Mas, comparado ao segundo trimestre, o resultado foi 14 vezes maior. Uma bela recuperação.
E os papéis das empresas, que vinham apanhando na bolsa, retomaram o terreno perdido. As ações da Localiza superaram o pico anterior (de fevereiro de 2020). Estão quase 20% mais caras do que antes da pandemia. As da Unidas, idem. Em setembro, a Localiza começou um trâmite para comprar a Unidas (criando uma empresa quatro vezes maior que a Movida).
Ainda falta a aprovação do Cade, mas isso ajudou na valorização dos papéis da dupla. A Movida, de qualquer forma, também colhe os frutos da retomada. Cada ação custava R$ 22 antes da pandemia. No fechamento desta edição, elas estavam em R$ 31.
Carro para que te quero
As locadoras já vinham se antecipando para atender a outro tipo de público: o pessoal que quer um carro na garagem full time. Há cerca de dois anos, Unidas e Movida oferecem planos de aluguel de veículos por assinatura. Em setembro, a Localiza também entrou no ramo. Nesta opção, os clientes fazem contratos com prazos maiores – até quatro anos, por exemplo.
Nos aluguéis mais longos, pode sair um pouco mais caro do que comprar um carro à vista e revendê-lo depois para uma pessoa física (que paga mais do que a loja). Mas tende a ser menos escorchante do que um financiamento – e também não há dor de cabeça com IPVA, manutenção, nem tirar foto do possante para pôr na Webmotors, na hora da revenda. “É uma tendência que vem ganhando força com a valorização da prestação de serviços em detrimento da posse de bens”, diz Antônio Jorge Martins, professor da FGV.
É isso. Estamos na era dos carros “AirBnB”, e as locadoras têm tudo a ganhar. Mas a concorrência vem forte. É que as montadoras também acordaram para essa realidade. Em setembro deste ano, a Toyota passou a locar modelos para pessoas físicas por meio das suas concessionárias.
Já a Volkswagen criou, há dois anos, um serviço de gestão de frotas para médias e pequenas empresas. A próxima etapa é alugar para pessoas físicas também. O movimento ligou o sinal de alerta nas locadoras. “Nosso negócio vai sofrer grandes mudanças nos próximos anos, com a entrada desses grandes. Por isso realizamos a fusão [com a Localiza], isso vai criar uma empresa mais forte”, diz Luis Fernando, da Unidas.
Outra tendência que promete ganhar um gás é aquela que os gringos chamam de carsharing, o compartilhamento de veículos. Você abre um aplicativo, encontra o carro compartilhado mais próximo e sai dirigindo. Tipo um Uber no qual você é o motorista (uma boa para viagens curtas, por exemplo).
No Brasil, quem aposta no segmento é a startup Turbi. Criada em 2017, a empresa conta com mil carros disponíveis na Grande São Paulo. A demanda da Turbi é hoje 30% maior do que no pré-pandemia. “Só não vamos crescer mais porque não estamos recebendo carro para alugar”, diz Diego Lira, CEO da Turbi.
A startup rebate as críticas de que o modelo não pega no Brasil. “Os brasileiros estão fazendo as contas e percebendo que o custo de ter o carro é alto, sendo que, bem, grande parte do tempo ele fica parado na garagem”, afirma Diego.
Tudo isso traz um novo paradigma. Porque a quantidade de gente que não quer ter carro está mesmo crescendo. Nos EUA, a perspectiva é que a posse de veículos diminua em 80%, segundo um estudo da Universidade Stanford. E a tendência é global, ao menos nos grandes centros.
Isso abre todo um novo mercado para o aluguel de carros, em todas as suas formas. E torna essa área mais interessante do que nunca para quem quer investir ou empreender. A briga pelos donos de CNH sem carro, afinal, está só começando.
Por Luciana Lima | Ilustração: Iago Novais | Design: Tiago Araújo, da VC S/A.